segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Quadragésimo sexta: "You, who are lost"

Tu, que andas perdido na indulgência e conforto da rotina; na resignação e comodismo de amores que foram e já não são; despido de borboletas, vazio, desenlaçado, dormente de sorrisos e afetos, descalço a recordar memórias de um passado feliz, ou de coração preso à confusão e relevância que os escassos momentos de regozijo que continuas a partilhar possam significar mais do que o que são; procurando neles resgatar ou compensar-te da ausência de tudo o resto; diariamente sobrecarregado com o fardo da luta, mesmo cansado, para manter a ilusão do que sempre sonhaste ter e não tens; crédulo na esperança de um futuro convalescente que se compadeça com os teus erros, que esborrache e rasure as máculas que vês no outro e te diga, benzendo-te, que tudo pode mudar caso te esforces só mais um pouco... não resistas a aceitar que talvez prefiras novos perfumes; se algum neles tropeçares, encontra e agarra-te às gargalhadas fáceis e espontâneas, ao fervor de olhares ávidos e sedentos de paixão que se retraem, empachados e tímidos, sempre que se entrecruzam com os teus, que te ruborescem as maças de rosto e agitam o teu coração tão fulgurosa e avidamente, que o tempo para, e, no meio de tudo e todos, apenas os olhos e o sorriso dela te faça sentido, ali, calçados nos teus, num infinito de desejo, como um admirável mundo novo à tua espera... Agarra-o sem medo, sem paúra de desiludir alguém, sem pudor ou pejo de olhar para trás e dizer adeus ao templo que já ergueste, sem temor da perda, ou de que o firmamento desabe sobre ti e navegues no caos. Deixa-a desassossegar o teu coração e entrar na tua casa; dá-lhe a oportunidade de veres nela a fuga que antes procuraste para superar a angústia do teu dia-a-dia; deixa-a ser ela agora a âncora que te suporta e te faça acreditar em mais e melhor. Permite-te acreditar que a estrada da tua vida possa mudar apenas à mercê da tua decisão; atreve-te a mudar de direção e confia que a curva para onde escolhes seguir te possa levar a uma nova casa, a novas pessoas, a diferentes sonhos e a encontrar felicidade em coisas que talvez pensaste nunca poder ter, ou sequer merecer. Salta. Por mais fugazes que sejam todos os segundos desse salto, vive-os intensamente, toma-os como teus, porque terão valido a pena. 
Após a queda, amarra a dor, faz dela uma pequena pedra que sobrou do tudo que viveste, pois conheceste o real significado do amor. 

domingo, 22 de junho de 2014

Quadragésimo quinto: Volta.

Voltaste a partir. E, contigo, todos os sorrisos, toda a candura, toda a simplicidade do nosso sentir a dois, cada suspiro de amor e todos os relances das minhas aspirantes vontades de proteger-me do mundo em mais um abraço teu. Foi tanto o que já fizeste de mim ruborescer ao sol e denunciar ao mundo, foi tanto o que já brilhou no meu rosto de júbilo e amor, qual espelho e reflexo de toda a tua alegria de viver e da minha inocente felicidade em partilhar-me contigo.
Mas não, mais uma vez foi o mesmo vazio extenso e pesado, fardo que teima regressar a cada partida tua, que quis ficar, que ficou... Sem pedir licença, roubou-me a fotografia das gargalhadas de menino que de ti guardava na alma adentro e me despiu da única recordação que tinha do teu singelo beijo.
Mais um vez, resta-me o tempo que se obstina em não passar, arrastado num relógio alheio de ponteiros e números; resta-me a vagabunda espera de um banco de jardim, de quem sozinha aguarda por uma data incógnita, por um regresso incerto e uma genuína ilusão de esperanças; mais uma vez, resta-me a solidão de um coração naufragado à deriva, esperando rumo, vento e proa, qual Dulcineia imbuída em silêncios de maresia e de mar alto, aguardando pelo perfume de azul e primavera que o retorno do seu marujo em bandeira erguida sempre anuncia.
Volta p'ra mim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Quadragésimo quarto: À parte.

Dei por mim sentada num sítio de algures, num banco de ninguém, tropeçando em porquês e comos no caos da desordeira trovoada de pensamentos que me alvoravam à alma a apatia e prostração da minha comunicação com o redor. Dificuldade tanta em compreender seja o que for…
Do pano azul e estrelícial desse céu de sonhos, chegava-me um canto de pardais; uma melodia reguila de inquietações, transpirando uma felicidade e acalmia que só num ambiente primaveril nos é permitido saborear. Nos enlaces orquestrais do seu canto, as notícias de um mundo em movimento, de uma civilização denunciada em recortantes diálogos de perturbados transeuntes, bêbados de circunspecções, pródigos no encanto próprio de cada um e hipocritamente amarrados a uma consciência que não têm e que desdenham pelo escárnio da sua soberba. Em cada olhar sempre um novo escondido desejo; em cada sorriso sempre uma nova profícua vontade e, em cada mais profundo inspirar, um tanto maior e velho refalsado bater de asas. Ao redor de relances, sucessivos rostos erguidos por velhos troncos de ramos e folhas onde, em todo o galho, ambições dormitam num vazio de espera, aguardando, dormentes, pela oportunidade que nunca apareceu mas que uma teimosa esperança folga reencontrar.

Neste trampolim de egos que me envolve e circunda, o pardal continua o seu canto com melodias de sol e primavera, aconchegando-me com um calor natural que me sossega e envolve num genuino manto de vida. Apodero-me então de uma resignada conformidade no estar, um sentimento de perda e abandono de futuro, onde só o agora deste canto me fala do único mundo em que quero entrar, o único onde sonhos e fantasias crescem de mãos-dadas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Quadragésimo terceiro: Em frente.


Desfloraste-te de medos e receios. O horizonte imundo de improfícuas incertezas, antigo monstro de gigantes sombras que te afogava entre hesitações e incongruências constantes, tornou-se, finalmente, desabrochada flor com fragrâncias de vida e liberdade. O manto pantanoso de dúvidas que tantas vezes te cobriu o rosto caiu-te, por fim, deixando a descoberto o jubiloso sorriso de quem sabe agora querer e acreditar. Não mais erguidos fortes se levantarão adiante de quem se recusa sossegar-se com quimeras alheias. Opaca a visão daquele que não consegue ver para além da sua própria verdade. Cegos os que se recusam a ver senão as certezas de outrem que não as da consciência própria. Robusta cada certeza, renascida qualquer esperança. 

Quadragésimo segundo: "Vinte dias sem o amor"

Foi no meio de lágrimas de antecipada saudade que a viu partir. Consumiu o vazio que o acompanhava e, simultaneamente, deixou-se consumir por ele numa gula partilhada a dois, tão sádica, voraz e inóspita que só satisfeita, só saciável nas recordações felizes que dela guardou.

E então o silêncio, monstro que lhe sugou dos ouvidos as gargalhadas idas; e então o breu, cegueira que lhe tardou o vislumbre de novas auroras e esperanças; e então o medo, sombra perene que lhe roubara dos lábios o riso meigo e do rosto a alegria do deslumbramento.  Apenas as lágrimas e a solidão ficaram; apenas elas lhe acudiram o vazio e o envolveram num ermo de serenidade e paz, coroado pelas memórias de um passado cuja intensidade persistirá desarmar o poder do tempo, o desgaste da distância e a possessiva firmeza do esquecimento.  Racionalizou o consolo e a dor mas a saudade ficou. Junta, uma ténue imagem que dela guarda. E ainda que desvanecida, castigada ou desbotada por quantas as lágrimas que já por ela deixou correr, continua a ser na escuridão e no silêncio das suas fechadas pálpebras que devolve a nitidez e cor ao rosto que sempre recordou, ao retrato que anseia redescobrir a olhar o seu, algures num tempo que foi e que voltará a ser. Nesta dormência, foi percebendo que já nada mais havia ou importava no estar; a sua vida tornara-se um pêndulo suspenso entre a mais bonita recordação e o mais desejado sonho, um espectro só alimentado de passado e de futuro. O presente bastava-se num sopro contido, num relógio parado, num hiato de espera. Alimentou-se de saudade mas era a fome e a sede de um só abraço que procurava e sabia não poder ter. Restaram-lhe os ténis que pisou, as canções que lhe tocaram, restaram-lhe as danças, o fado, o manjerico, o Cais do Sodré, restaram-lhe os cozinhados, os chocolates, os livros e os cremes, restaram-lhe os filmes que viu e os que nem acabou de ver, restaram-lhe os bancos do Tejo, da cantina, dos miradouros e da Graça, restaram-lhe os almoços e o comboio, os cochilos na fundação, o bolo no Chiado e o china de Entrecampos, restou-lhe o seu cabelo desarrumado, restaram-lhe as mordidas...

Só quando cai a noite e procura o sono na almofada, reconhece a estrela que teima bater à sua janela e sente, então, que algo mais lhe restou, que algo mais ficou... uma genuína esperança e mais um fado no fado.

domingo, 28 de abril de 2013

Quadragésimo primeiro: Um certo tipo de dança.


Relembro, volvidos meses, o rítmico batimento do meu coração rendido ao melodioso encaixe que brotava do simples encontro de duas mãos apaixonadas. Relembro o constante deslumbramento perante a descoberta do mundo de composições que conseguíamos esculpir com elas e da feliz sensação de constatar que, a cada nova, a mesma harmonia teimava perdurar, que a perfeita comunhão entre as nossas duas mãos possuía um elo que as aglutinava invariavelmente, desmesuradamente, independentemente do espaço para onde fugissem os seus dedos...
 Relembro a forma como se afagavam mutuamente, num entrelaçado de dedos despidos de preconceito, ávidos pela eternidade, e onde ternos beijos lá iam, ocasionalmente, emoldurando o cenário. Lembro também os diferentes estilos com que os deixávamos a dançar; desde o foxtrote ao sapateado e do tango à valsa lenta, vimo-los tantas vezes mudarem a intensidade com que se faziam deslizar naquele palco de pele, percorrendo unhas, escalando dedos e planando na palma e costas de uma mão que sabiam um mundo por explorar.
Relembro a astúcia com que brincavam, com que nos provocávamos em lutas selváticas de polegares sequiosos por conquista, com que cada um de nós ansiava sempre vencer e contemplar a capitulação final do prisioneiro amado; e, só assim, porque sabíamos que não havia guerra sem paz, porque sabíamos que inevitáveis acabaríam sempre por ser os derradeiros tratados de paz, imperialmente selados, em jeito de tão cobiçável recompensa, por longos beijos ao assoberbado vencedor!

domingo, 14 de abril de 2013

Quadragésimo: Um canto.


Conhecemos poucos momentos em que a paz que se apodera de nós é, provavelmente, ainda maior do que a consciência que temos dela.  Um café à beira-mar, uma viagem no cacilheiro a cruzar o Tejo ou mesmo Eça nos jardins da Gulbenkian, trazem muitas vezes lufadas perfumadas desse silêncio querido, um golo do suave tónico que logo nos ruboresce a palidez da alma e assim nos afoga numa maresia de serenidade e quietação. O pensamento desfalece-me, cauteloso e, com ele, toda a razão. Observo-a, desvanece-se numa dança desassossegada de cabelos que, desalinhadamente, me vão esculpindo o rosto ao som de uma melodiosa brisa confortante, majestosamente conduzida pela batuta ritmada do tumultuoso ranger do mar. Paulatinamente perco do chão a sua noção de peso, volume e espaço e, com ele, perdem-se também os suspiros das constantes lamúrias e caprichos nos meus ouvidos, ficando apenas, florescendo no despojado vazio, o jubiloso canto de uma cotovia. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Trigésimo novo: Diferenças.


Foste-te embora. Foste-te embora sem nunca teres tentado. Abandonaste a tentativa no preciso momento em que eu a alimentava. E fizeste-o sem sequer ter sido eu a expulsar-te, como me é tão habitual. Porquê? Não o atribuas à impossibilidade das banalidades; como se o mais sincero dos sentimentos só pudesse brotar entre duas almas gémeas, como se essa avalanche de rodopios frenéticos dos apaixonados só se pudesse apoderar dos mais belos corpos celestes; como se as borboletas não me explodissem já das órbitas com tão frenético bater de asas nesses olhares cruzados, relanceados, difusos, profundos, ternos e cegos que trocávamos; como se o teu riso embrulhado no meu e as tuas palavras dissimulando-se nas minhas, ambas tímidas e claramente falsas, não fossem fórmula bastante para denunciar intenções reais. Não culpes os ideais estéticos ou as ambições antagónicas; nem tão pouco culpes um qualquer pedestal onde me colocaste pois, se isso aconteceu,  foi porque tu me puseste lá, não eu. Não te desculpes, por fim, com falta de auto-estima, consideração ou valor; pelo menos para ela o argumento não valeu. Culpa-te a ti; a ti e à tua falta de coragem; a ti e à tua timidez que só funciona para xizes mas já não para ipsilons; culpa-te a ti por não saberes a linguagem dos sentidos, por não saberes decifrar sinais. Culpa-te só a ti...

terça-feira, 1 de maio de 2012

Trigésimo oitavo: "Palavras?"


É cada vez mais sinuoso este caminho que faço. Da ideia que cresce viva por detrás do brilho do meu olhar, um turbulento número de incongruências separa-a do texto que ora escrevo, represtinada e lentamente, nas teclas deste computador. Por tudo isto fica a tentativa e, talvez, apenas ela. A concretização do abstracto pelo mito da linguagem acaba por se transformar, invariavelmente, neste poço cadavérico da tentativa. Fugaz. Inconsequente. Sou, resignadamente, uma cativa do número de palavras de um dicionário. Estas amarras silábicas prendem-me a uma impotência para captar a realidade sensível numa articulação frásica. A palavra deixou, há muito, de ser o veículo. Já nem conto as vezes em que volto atrás para compor o raciocínio, tantas são. No fundo, em mim, toda a ideia se perde. Nunca uma fuga de informação se viu tão desvirtuosamente perdida. A metafisica deixou de viver na cor das minhas letras.

sábado, 17 de março de 2012

"Talvez pudesse ouvir passos junto à porta do quarto, passos leves que estancariam enquanto a minha vida, toda a vida, ficaria suspensa. Eu existiria então vagamente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à obscura respiração dessa pessoa parada."